quarta-feira, 10 de março de 2010

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação - Jorge Lobo

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação

Jorge Lobo*

A lei 11.101/05 (clique aqui) , que disciplina a recuperação judicial e a falência da empresa, tem gerado controvérsias a respeito da cessão fiduciária de títulos de crédito e de direitos creditórios (conhecidos como "recebíveis") em garantia de empréstimos e financiamentos bancários, havendo se formado duas correntes de opinião: a maioria sustenta que a cessão de recebíveis não está sujeita aos processos concursais; a minoria afirma que excluí-los da recuperação e da falência do devedor-fiduciante importa em conceder odioso privilégio aos bancos em detrimento dos interesses dos demais credores.

É truísmo que o direito anda a reboque dos fatos, sobretudo em épocas de autênticas revoluções científicas, técnicas e tecnológicas, que fazem desaparecer antigas necessidades e anseios e surgir novas demandas e reclamos por bens e serviços, que exigem o aparecimento de mecanismos e expedientes legais aptos a atendê-los, como soe acontecer com a cessão fiduciária em garantia de recebíveis.

É truísmo, outrosssim, que o acúmulo de ações e execuções judiciais de longuíssima duração e o fracasso na excussão dos direitos reais de garantia clássicos para satisfazer os direitos do credor pignoratício e do credor hipotecário, duas das mais notórias manifestações da crise da justiça, impuseram a recriação da fidúcia ou negócio fiduciário, sob diferentes formas, a saber:

(a) a alienação fiduciária em garantia de coisa móvel;

(b) a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível;

(c) a propriedade fiduciária de coisa móvel infungível;

(d) a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel;

(e) a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais;

(f) a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis;

(g) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito e

(h) a cessão fiduciária de recebíveis em garantia de empréstimos e financiamentos bancários.

Com efeito, logo após a promulgação da lei 4.728/65  (clique aqui), que incorporou, ao direito positivo brasileiro, o instituto da alienação fiduciária em garantia de coisa móvel, a lei 4.864, também de 1965 (clique aqui), com a finalidade de estimular a construção civil, criou, no art. 22, a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais, com o aplauso da doutrina pátria, vindo a lei 9.514/97 (clique aqui), no art. 17, II, a instituir a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis e, por fim, a lei 10.931/2004 (clique aqui), a dispor sobre a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito (além de direitos creditórios, presentes e futuros, em se tratando de garantia constituída através de Cédula de Crédito Bancário, nos termos do artigo 31 da referida lei 10.931), todos institutos de Direito Econômico, que se distinguem pela clara finalidade de buscarem soluções técnicas, que atendam às exigências do mundo moderno, e de serem respostas prontas e eficazes às novas, crescentes e instáveis exigências de uma sociedade em vertiginosa transformação, sem suprimir ou esmagar os direitos individuais do cidadão.

Isto posto, adentrando na controvérsia, entendo que cessão fiduciária em garantia de recebíveis é a transferência, limitada e resolúvel, que faz o devedor-fiduciante ao credor-fiduciário, do domínio e posse direta, mediante tradição efetiva, de direitos creditórios oriundos de títulos de crédito próprios e impróprios ou de contratos em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do credor-fiduciário com a liquidação da dívida garantida e a reversão imediata e automática da propriedade ao devedor-fiduciante uma vez satisfeito o débito.

Ocorrendo mora ou inadimplemento da obrigação garantida, o credor-fiduciário poderá, independente de anuência do devedor-fiduciante, exercer os direitos inerentes e decorrentes dos créditos cedidos, aplicando as importâncias recebidas no pagamento do principal da dívida, acrescido de juros compensatórios e moratórios, pena convencional, honorários de advogado e despesas de cobrança, devendo entregar ao devedor-fiduciante o saldo que houver, eis que, como assinala Melhim Namen Chalhub, "a cessão fiduciária e a alienação fiduciária são institutos similares, exercendo a mesma função de garantia do crédito e alicerçando-se nos mesmos fundamentos; enquanto na alienação, o objeto do contrato é um bem (móvel ou imóvel), na cessão o objeto é um direito creditório; em ambas, a transmissão do domínio fiduciário ou da titularidade fiduciária subsiste enquanto perdurar a dívida garantida", razão pela qual o tratamento legal da cessão fiduciária em garantia de recebíveis se orienta pelos mesmos princípios da alienação fiduciária em garantia de bens móveis e imóveis, aplicando-se-lhe, ademais, por interpretação extensiva e analógica, as leis 4.728/65, com a redação dada pela lei 10.931/2004; 4.864/65, e 9.514/97, além do Decreto-Lei 911/69.

Destarte, a lei 11.101/2005, ao referir-se, no art. 49, § 3º, a "proprietário fiduciário de bens móveis", e, no art. 85, a "proprietário de bem arrecadado", abrange tanto o proprietário fiduciário, que adquiriu essa qualidade por força de contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, quanto o proprietário fiduciário, que ostenta essa posição em decorrência de contrato de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, ambos espécies de negócio fiduciário ou "venda para garantir" e institutos de Direito Econômico, que têm a finalidade precípua de servir de instrumentos, a serviço do Estado e dos particulares, do desenvolvimento econômico e social do país, daí serem regulados por princípios jurídicos próprios, que não seguem a idéia de justiça, mas de eficácia técnica, o que explica, justifica e fundamenta a sua exclusão dos processos de recuperação judicial e de falência do devedor-fiduciante.

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*Advogado do escritório Jorge Lobo Advogados

segunda-feira, 1 de março de 2010

J.P. cobra acionista do Independência - "fundos abutres"

J.P. cobra acionista do Independência
Fonte: Valor Econômico
Data do documento: 24/02/2010


Os bancos credores do frigorífico Independência, em recuperação judicial há um ano, resolveram partir para cima dos bens dos acionistas da empresa, a família Russo, e pedir na Justiça a execução de garantias pessoais dadas por eles em contratos de empréstimos. O J.P. Morgan já conseguiu vitória em corte em Nova York, que determina a execução de um total de US$ 115 milhões em garantias. O Banco Votorantim, o Banco da Amazônia, o Itaú BBA e o Banco Fibra estão todos adotando estratégia semelhante na Justiça brasileira.

O J.P. Morgan, representado pelo escritório de advocacia Felsberg e Associados, recorreu à Justiça de Nova York porque o empréstimo de US$ 100 milhões, que tinha prazo de vencimento final em 26 de fevereiro de 2009 e garantia dos acionistas, foi feito em dólar. O próximo passo do banco americano é recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça para que homologue a decisão e as garantias possam ser executadas. Os acionistas da família Russo, por sua vez, alegam que tudo o que tinham foi investido no Independência e que os ativos da empresa estão protegidos pela recuperação judicial.

Fontes ligadas ao Independência negam que a busca dos credores pelas garantias dos acionistas da empresa vá impactar o plano de recuperação aprovado no final do ano passado ou a emissão em andamento de eurobônus no mercado externo de US$ 150 milhões pelo frigorífico. Afinal, os bens dos acionistas "na pessoa física" nada têm a ver com os ativos da empresa, a "pessoa jurídica".

Os investidores externos parecem concordar com isso, dado o interesse demonstrado pelos papéis pelos chamados "fundos abutres", que se especializam em comprar títulos de empresas inadimplentes ou em recuperação judicial. A previsão é fechar no dia 15 de março a transação, que tem prazo de vencimento em cinco anos e paga juros tão altos como 15% a 20% ao ano em dólares.

Para ajudar a vender os títulos, Tobias Bremer, diretor vice-presidente do Independência (ironicamente um ex-executivo do J.P. Morgan), tem dito aos investidores externos que Ricardo Paes, diretor no Brasil da firma de consultoria especializada em reestruturação de empresas com problemas de nome Alvarez & Marsal, será o diretor financeiro do frigorífico logo após a venda dos bônus. Procurados, os dois executivos não se pronunciaram.

Os rumores de que a Brasil Foods (Perdigão mais Sadia) poderia comprar a companhia também voltaram e são responsáveis por parte da alta dos preços dos papéis do Independência no mercado secundário de bônus desde que a venda dos novos títulos no exterior começou. No total, os investidores internacionais já têm US$ 525 milhões em eurobônus do Independência em suas mãos neste momento. Os papéis chegaram ao preço de 8% do valor de face no pior momento de crise para a companhia, mas subiram para níveis entre 25% e 27% desde que a transação de emissão de novos eurobônus começou.

A emissão dos novos títulos seguem a chamada regra 144A, para investidores qualificados nos Estados Unidos. Quem está liderando a transação é a firma BTIG, americana, de executivos que vieram do Goldman Sachs e especializada na venda de ativos estressados ou podres, de empresas inadimplentes.

Os novos bônus têm garantias nos ativos da empresa, incluindo propriedades imobiliárias e equipamentos. Um terço das novas notas teria amortização em 2013, 50% em 2014 e o resto em 2015. Os detentores desses papéis teriam prioridade de recebimento em relação aos demais credores.

O sucesso da transação de emissão de bônus é fundamental para que a empresa consiga fazer seu primeiro pagamento, no dia 31 de março, de um valor de no mínimo R$ 100 mil para os credores pecuaristas. Esse é o prazo final para essa primeira parcela, prevista no plano de recuperação e reestruturação da empresa, aprovado pela maioria dos credores em 5 de novembro. Se a empresa não fizer esse pagamento, os pecuaristas poderão pedir a falência da empresa.

Segundo o plano de recuperação, o dinheiro captado com os bônus devem ajudar a tornar operacionais outras fábricas da companhia, que poderia então voltar a gerar mais caixa operacional e pagar suas dívidas. Hoje apenas as unidades de abate de Rolim de Moura (RO) e Janaúba (MG) estão abertas. Também estão em atividade os curtumes de Nova Andradina (MS) e Colorado do Oeste (RO) e a fábrica de charque em Santana de Parnaíba (SP).

Só com pecuaristas, a dívida do frigorífico Independência alcança R$ 194 milhões, conforme a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat). Ao todo, a empresa tem débitos com 1.524 criadores espalhados por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Minas Gerais e Goiás. As dívidas totais do Independência - que surpreendeu o mercado ao pedir recuperação judicial no dia 27 de fevereiro de 2009 - chegavam a R$ 3 bilhões.

Entre os bancos, os principais credores são o Bradesco, Santander, J.P. Morgan e Citigroup, com mais de 90% da dívida bancária do Independência. Instituições de porte médio como Votorantim, Fibra, BicBanco, Daycoval, Pine e Banco da Amazônia são todos credores do frigorífico também, além do Itaú BBA e do falido Lehman Brothers.

O mercado apostava todas as suas fichas no Independência, pois não acreditava que uma empresa que, em novembro de 2008 havia obtido R$ 250 milhões sob a forma de capital do BNDESPar, a empresa de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e iria receber outros R$ 200 milhões de capital em março de 2009, poderia pedir recuperação judicial. Ainda mais depois de anunciar a recompra antecipada de até US$ 144 milhões de eurobônus que só venceriam em 2015 e 2017, demonstrando ter caixa no momento. Ainda mais considerando-se que seu fundador e dono, Toninho Russo, suplente de senador pelo PL-MS, é um dos grandes apoiadores do presidente Lula.

Dentro do plano de recuperação judicial, aprovado em novembro, os credores financeiros (com créditos de R$ 2 bilhões) aceitaram dar um perdão de 50% à empresa. O plano aprovado também prevê que os acionistas "obrigam-se" a buscar a venda do controle da empresa. Além disso, se houver venda do controle, os credores financeiros terão direito a um bônus de subscrição, uma espécie de ação do frigorífico. Ficou acertado que, nesse caso, 50% do valor da operação serão divididos entre os credores financeiros. Na hora de votar o plano de reestruturação da empresa, o J.P. votou a favor, mas negou cláusulas que limitassem ações contra os acionistas. O Banco Votorantim votou contra o plano.

(Cristiane Perini Lucchesi e Fernando Torres, de São Paulo. Colaborou Alda do Amaral Rocha)

A falência chega à China

A falência chega à China
Fonte: Valor Econômico
Data do documento: 01/03/2010


Os homens de negócios da China sempre precisaram de capacidade de recuperação, mas agora eles devem começar a se acostumar com o espectro da falência. Isso porque agora a China conta com um código de falências com poderes e os tribunais do país estão começando a impor o seu cumprimento com rigor.

A legislação falimentar na China começou logo depois de Deng Xiaoping ter iniciado suas reformas pró-mercado, três décadas atrás. A Lei de Falência da Empresa (Implantação Experimental), a primeira do seu tipo, foi promulgada em 1986. Sua execução, porém, foi retardada por seu próprio raio de aplicação muito estreito; a ausência de leis correspondentes que regem reestruturação de corporações; intervenção governamental excessiva; incompatibilidade com a norma falimentar baseada em política em vigor à época; erros técnicos e uma incapacidade geral de tornar o código operacional.

Assim, em 2006, uma versão revisada da lei foi promulgada, assinalando um importante marco nas tentativas da China de construir um sistema jurídico eficaz, à medida que o país avança rumo a uma economia de mercado. Comparado com o seu código de falências original, o código de 2006 está firmemente arraigado nas necessidades de uma economia de mercado.

Primeiro, ele visa garantir que as obrigações sejam justa e regularmente atendidas quando um devedor ficar financeiramente insolvente. Assim, ela procura proteger os legítimos direitos dos credores e também dos devedores.

A legislação também impôs uma data limite para abolir a "falência baseada na política pública" - a prática adotada pelo Conselho de Estado para liquidar empresas estatais deficitárias (SOE) e remanejar empregados dispensados. Ao contrário da Lei de Falências, a norma administrativa teve uma hierarquia distinta de prioridades de liquidação: o montante devido pelo SOE falido a seus empregados e os encargos com remanejamento devem ser cobertos antes de tudo por seus ativos totais, incluindo as garantias do empreendimento, visando reduzir a dependência sobre orçamentos governamentais locais.

Mas esse processo deixa os direitos dos credores sem defesa, provocando críticas generalizadas. A nova Lei de Falência da Empresa redefine o seu raio de aplicação para impedir sobreposição a outras leis, como a Lei de Seguridade Social e a Lei do Trabalho. De fato, o remanejamento dos empregados dispensados pelas SOE e as demais implicações das demissões temporárias agora deveriam ser primeiramente abordadas pelo governo, por meio da rede de proteção social, em vez de tratá-las por processo falimentar.

O novo código também introduz o conceito da "reestruturação extrajudicial administrativa", pela qual advogados, contadores concursados e demais intermediários atuam como administradores de empresas que estão em processo de falência. A norma revoga a Equipe de Liquidação, um regime antiquado que muitos alegam ter sido injusto, agressivo na intervenção administrativa, não profissional e sem transparência.

Para permitir que essa parte da lei avance, o Supremo Tribunal do Povo emitiu interpretações judiciais que estipularam quem pode ser designado liquidante e o montante e tipo de indenização que pode ser paga. Até o momento, cerca de 2.520 agências e 388 pessoas físicas foram incluídas na lista de liquidantes.

Mas os problemas persistem. Por exemplo, os síndicos são injustificadamente mal remunerados em casos de ativos limitados; além disso, a nomeação aleatória e indiscriminada de liquidantes algumas vezes deixa casos com insuficiência ou excesso de funcionários.

Consequentemente, a missão do liquidante, embora implique responsabilidade absoluta, é extremamente arriscada em termos de recompensa. Se não for encontrada nenhuma solução viável, nenhuma agência ou pessoa física desejará atuar como liquidante em casos falimentares comuns.

Outra inovação importante é a adoção de normas de reestruturação baseadas nas experiências de outros países. A possibilidade de reestruturação equilibra os interesses dos grupos de pressão e usa as proteções jurídicas para ajudar empresas com risco potencialmente maior a prevenir ou evitar a falência se um resgate valer a pena ou for possível.

Normas mais rígidas e mais razoáveis devem ser estabelecidas para que planos de reestruturação possam ser aprovados pelos tribunais. Por exemplo, se a exigida maioria dos acionistas adotasse tal plano, o tribunal deveria proteger os direitos da minoria de credores que possa ter se oposto a ele. E se a taxa de liquidação para as ações coletivas dos credores for definida como não inferior à existente na época em que a proposta de plano de reestruturação foi submetida para aprovação, deverá ser considerada uma compensação, no caso de o pagamento ser adiado.

Além disso, a Lei de Falências, a Lei das Empresas e a Lei de Valores Mobiliários devem ser bem coordenadas e mutuamente reforçadas. Como pode uma empresa que está sendo reestruturada, digamos, encontrar uma forma de emitir títulos para financiá-la se ela não pode satisfazer normas convencionais como rentabilidade e valor patrimonial líquido, conforme exigido pela Lei de Empresas e a Lei de Valores Mobiliários? A lei deve conter cláusulas específicas com respeito a essas questões, para assegurar um bem sucedido registro em bolsa das firmas que estão em processo de reestruturação.

Para evitar fraudes, um grave problema no passado, a nova lei estabeleceu um "direito de rescisão", pelo qual o liquidante pode solicitar que o tribunal rescinda qualquer ação de um devedor que envolva fraude, evasão ou liquidação desonesta no período estipulado, antes que o pedido de falência seja aceito e os ativos, recuperados. O sistema agora detém a chave para a liquidação justa. Além disso, a Lei Penal da República Popular da China agora inclui fraude falimentar.

A implantação bem sucedida da revisada Lei da Falência da China depende do seu efetivo cumprimento e do abandono das mentalidades e práticas formadas na vigência da versão antiga, especialmente na época da falência baseada na política. Apesar das dificuldades que restam, a legislação de falências da China está cada vez mais adaptada à economia de mercado; a tendência é irreversível.

(Wang Xinxin é livre docente de Direito na Universidade Renmin (Popular) da China e diretor do Centro de Pesquisa de Direito Falimentar. Copyright: Project Syndicate, 2010. www.project-syndicate.org)

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação (Jorge Lobo)

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação
Fonte: Valor Econômico
Data do documento: 24/02/2010


A Lei nº 11.101, de 2005, que disciplina a recuperação judicial e a falência da empresa, tem gerado controvérsias a respeito da cessão fiduciária de títulos de crédito e de direitos creditórios (conhecidos como "recebíveis") em garantia de empréstimos e financiamentos bancários, havendo se formado duas correntes de opinião: a maioria sustenta que a cessão de recebíveis não está sujeita aos processos concursais; a minoria afirma que excluí-los da recuperação e da falência do devedor-fiduciante importa em conceder odioso privilégio aos bancos em detrimento dos interesses dos demais credores.

É truísmo que o direito anda a reboque dos fatos, sobretudo em épocas de autênticas revoluções científicas, técnicas e tecnológicas, que fazem desaparecer antigas necessidades e anseios e surgir novas demandas e reclamos por bens e serviços, que exigem o aparecimento de mecanismos e expedientes legais aptos a atendê-los, como soe acontecer com a cessão fiduciária em garantia de recebíveis.

É truísmo, outrosssim, que o acúmulo de ações e execuções judiciais de longuíssima duração e o fracasso na excussão dos direitos reais de garantia clássicos para satisfazer os direitos do credor pignoratício e do credor hipotecário, duas das mais notórias manifestações da crise da Justiça, impuseram a recriação da fidúcia ou negócio fiduciário, sob diferentes formas, a saber: (a) a alienação fiduciária em garantia de coisa móvel; (b) a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível; (c) a propriedade fiduciária de coisa móvel infungível; (d) a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel; (e) a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais; (f) a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis; (g) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito e (h) a cessão fiduciária de recebíveis em garantia de empréstimos e financiamentos bancários.

Com efeito, logo após a promulgação da Lei nº4.728, de 1965, que incorporou, ao direito positivo brasileiro, o instituto da alienação fiduciária em garantia de coisa móvel, a Lei nº 4.864, também de 1965, com a finalidade de estimular a construção civil, criou, no artigo 22, a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais, com o aplauso da doutrina pátria, vindo a Lei nº 9514, de 1997, no artigo 17, II, a instituir a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis e, por fim, a Lei nº 10.931, de 2004, a dispor sobre a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito - além de direitos creditórios, presentes e futuros, em se tratando de garantia constituída através de Cédula de Crédito Bancário, nos termos do artigo 31 da referida Lei nº 10.931-, todos institutos de direito econômico, que se distinguem pela clara finalidade de buscarem soluções técnicas, que atendam às exigências do mundo moderno, e de serem respostas prontas e eficazes às novas, crescentes e instáveis exigências de uma sociedade em vertiginosa transformação, sem suprimir ou esmagar os direitos individuais do cidadão.

Isto posto, adentrando na controvérsia, entendo que cessão fiduciária em garantia de recebíveis é a transferência, limitada e resolúvel, que faz o devedor-fiduciante ao credor-fiduciário, do domínio e posse direta, mediante tradição efetiva, de direitos creditórios oriundos de títulos de crédito próprios e impróprios ou de contratos em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do credor-fiduciário com a liquidação da dívida garantida e a reversão imediata e automática da propriedade ao devedor-fiduciante uma vez satisfeito o débito.

Ocorrendo mora ou inadimplemento da obrigação garantida, o credor-fiduciário poderá, independente de anuência do devedor-fiduciante, exercer os direitos inerentes e decorrentes dos créditos cedidos, aplicando as importâncias recebidas no pagamento do principal da dívida, acrescido de juros compensatórios e moratórios, pena convencional, honorários de advogado e despesas de cobrança, devendo entregar ao devedor-fiduciante o saldo que houver. Eis que, como assinala Melhim Namen Chalhub, "a cessão fiduciária e a alienação fiduciária são institutos similares, exercendo a mesma função de garantia do crédito e alicerçando-se nos mesmos fundamentos; enquanto na alienação, o objeto do contrato é um bem (móvel ou imóvel), na cessão o objeto é um direito creditório; em ambas, a transmissão do domínio fiduciário ou da titularidade fiduciária subsiste enquanto perdurar a dívida garantida". Razão pela qual o tratamento legal da cessão fiduciária em garantia de recebíveis se orienta pelos mesmos princípios da alienação fiduciária em garantia de bens móveis e imóveis, aplicando-se-lhe, ademais, por interpretação extensiva e analógica, as Leis de números 4.728, de 1965, com a redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004; 4.864, de 1965, e 9.514, de 1997, além do Decreto-Lei nº 911, de 1969.

Destarte, a Lei nº 11.101, de 2005, ao referir-se, no artigo 49, parágrafo 3º, a "proprietário fiduciário de bens móveis", e, no artigo 85, a "proprietário de bem arrecadado", abrange tanto o proprietário fiduciário, que adquiriu essa qualidade por força de contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, quanto o proprietário fiduciário, que ostenta essa posição em decorrência de contrato de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, ambos espécies de negócio fiduciário ou "venda para garantir" e institutos de direito econômico, que têm a finalidade precípua de servir de instrumentos, a serviço do Estado e dos particulares, do desenvolvimento econômico e social do país, daí serem regulados por princípios jurídicos próprios, que não seguem a ideia de justiça, mas de eficácia técnica, o que explica, justifica e fundamenta a sua exclusão dos processos de recuperação judicial e de falência do devedor-fiduciante.

(Jorge Lobo é advogado, mestre em direito da empresa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor e livre docente em direito comercial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ))