Fonte: Valor Econômico
Publicado por: Coped
Data do documento: 21/10/2009
Muito se tem discutido sobre o tratamento que deve ser dado ao crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis quando o devedor se encontra em processo de recuperação judicial. A Lei de Falências e Recuperação de Empresas prevê que todos os créditos existentes na data do pedido de recuperação judicial estarão a ela submetidos. Foi feita uma exceção, porém, a determinados créditos que, por sua natureza, não devem se submeter à recuperação judicial. É o caso, por exemplo, dos créditos garantidos por propriedade fiduciária de bens móveis e imóveis, cujos credores podem exercer o direito de propriedade sobre o respectivo bem ainda que o devedor esteja em recuperação judicial. Os tribunais têm divergido quanto ao tratamento do tema.
Este texto busca apresentar os argumentos que têm sido utilizados pela jurisprudência para dar subsídio à inclusão ou exclusão do crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis da recuperação judicial (ou seja, se tal crédito teria o mesmo tratamento conferido ao crédito garantido por propriedade fiduciária), bem como identificar qual posicionamento tem atualmente prevalecido nos principais tribunais do país.
O principal argumento daqueles que defendem a inclusão do crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis - as chamadas "travas bancárias" - na recuperação judicial é que coisas incorpóreas, tais como direitos creditórios, não teriam sido expressamente excepcionadas pela Lei de Recuperação Judicial. Sustentam seu argumento no fato de o artigo 49, parágrafo 3º, da lei, excepcionar expressamente a propriedade fiduciária de bens móveis e imóveis, mas nada dispor sobre a cessão fiduciária de bens incorpóreos como os recebíveis. Segundo essa corrente pró-devedor, caso o legislador pretendesse prever a cessão fiduciária de recebíveis no rol de exceções do artigo 49, parágrafo 3º, deveria tê-lo feito expressamente.
A jurisprudência pró-devedor sustenta ainda que a não submissão do cessionário fiduciário de recebíveis à recuperação judicial contrariaria princípios basilares da nova legislação, quais sejam os da preservação e função social da empresa. Segundo essa corrente, o exercício dos direitos conferidos pela cessão fiduciária de recebíveis pelo credor impossibilitaria a entrada de dinheiro na empresa, já que seria diretamente destinado ao banco cessionário. Os tribunais de Justiça do Espírito Santo e de Minas Gerais são exemplos dos que já adotaram esse posicionamento pró-devedor, determinando a inclusão dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis na recuperação judicial. Também há decisões da Justiça de primeira instância do Mato Grosso nesse mesmo sentido.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro utilizou recentemente outro argumento para também incluir os cessionários de recebíveis na recuperação judicial. Segundo o referido tribunal, a lei não permitiria cessão fiduciária de dinheiro, mas tão-somente de bem que possa ser vendido para pagamento ao credor. Dessa forma, descaracterizou a natureza jurídica da cessão fiduciária de recebíveis e a classificou como penhor, que, de acordo com aquele tribunal, seria o instituto que mais se aproximaria da real intenção das partes.
Outros tribunais adotam postura inversa, entendendo que os créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis não devem se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial exatamente por a Lei de Recuperação Judicial excluir os créditos garantidos por propriedade fiduciária de uma forma geral, não fazendo qualquer ressalva à cessão fiduciária de recebíveis. Tais tribunais entendem que, por ser a cessão fiduciária de recebíveis uma espécie pertencente ao gênero propriedade fiduciária, também estaria automaticamente excluída no artigo 49, parágrafo 3º, da referida lei. Esse entendimento já foi consolidado em São Paulo e no Paraná e começou mais recentemente a ser adotado pelo tribunal do Mato Grosso.
Para afastar o argumento de que os direitos creditórios em relação aos recebíveis não poderiam ser caracterizados como móveis ou imóveis, a jurisprudência pró-credor cita o artigo 83, incisos II e III, do Código Civil, que classifica os direitos como bens móveis.
O tribunal do Rio de Janeiro ainda não consolidou seu entendimento quanto ao tema. Apesar de existir decisão pró-devedor, o tribunal proferiu recente decisão pró-credor reconhecendo que o crédito garantido por cessão fiduciária de recebíveis não entra na recuperação judicial. O tribunal entendeu que, por mais que a exclusão desse crédito possa comprometer o capital de giro da empresa, não se deve desmerecer a proteção conferida pela LFRE à garantia fiduciária. Entendeu também que, especialmente em momentos de crise econômica como o atual, deve ser fomentada a utilização de mecanismos de crédito confiáveis, que atendam às exigências do mercado.
De uma forma geral, a atual jurisprudência pró-credor tem entendido que recebíveis são bens como qualquer outro e a eles se aplica a disciplina jurídica das coisas móveis. Dessa forma, tanto a propriedade fiduciária em garantia de coisas corpóreas quanto a cessão fiduciária de coisas incorpóreas teriam a mesma natureza jurídica, estando ambas imunes aos efeitos da recuperação judicial.
Outro argumento pró-credor é o parecer nº 534, de 2004, da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, segundo o qual a sujeição dessa garantia à recuperação judicial prejudicaria a expansão do crédito e a redução dos seus custos no Brasil, uma vez que os bancos só concedem créditos nessas condições partindo do pressuposto de que estão protegidos pela legislação. Em outras palavras, o legislador reconhece que a sujeição desses créditos aos efeitos da recuperação judicial acabaria, na prática, tornando sua concessão pelos bancos muito onerosa ou, até mesmo, inviável.
A questão deverá ser analisada pelo Superior Tribunal de Justiça em breve, mas a impressão que fica é de que ainda está longe de ser pacificada. São absolutamente assimétricas, como se vê , as decisões de alguns dos principais tribunais do país. De um lado Minas e Espírito Santo se postam ao lado de devedores. Paraná e São Paulo, por sua vez, acatam os argumentos dos credores. Até que tais divergências sejam completamente dirimidas, é recomendável que as instituições financeiras tomem cuidados adicionais ao conceder financiamentos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis, sempre verificando o posicionamento do tribunal que seria competente para julgar um eventual pedido de recuperação judicial do devedor.
(Carla de Vasconcellos Crippa e Caio Campello de Menezes são, respectivamente, associada e responsável pela área do contencioso e arbitragem do Lefosse Advogados, escritório que atua no Brasil em cooperação com a banca internacional Linklaters)
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