quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Recuperação judicial e necessidade de intervenção do Ministério Público

 
Recuperação judicial e necessidade de intervenção do Ministério Público - estudo de caso

J. S. Fagundes Cunha*

Insurge-se o Ministério Público do Estado do Paraná em face da prolação de sentença em autos com pedido de reparação de dano material e de dano moral sustentando, em síntese, que por se encontrar a empresa em recuperação judicial era obrigatória a intervenção do Ministério Público do Estado do Paraná, em especial porque pode redundar prejuízo aos trabalhadores. A Procuradoria Geral de Justiça expendeu parecer no sentido de que não é o caso de intervenção do Ministério Público, razão pela qual não deve ser provido o recurso.

O feito tramitou em Primeira Instância quando a parte requerida se encontrava em recuperação judicial, o que é incontroverso.

A venda da Varig S. A. e a nova Lei de Falência (clique aqui) é enfrentada por organismos políticos (publicação na internet na Rede PDT – Deputado Estadual Paulo Ramos, Líder do PDT na ALERJ) e articulistas, com o do Doutor Jorge Lobo1, no jornal Valor Econômico, do dia 6 de agosto de 2009.

Segundo ele os ministros do STF, durante a sessão plenária em que julgaram o Recurso Extraordinário 583.955-9, do Rio de Janeiro, decidiram, por maioria, ser "competente a Justiça estadual comum, com exclusão da Justiça do trabalho, para processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial", havendo, no penúltimo parágrafo da fundamentação do voto condutor, um manifesto equívoco, que pode gerar péssimas conseqüências se não denunciado e reparado.

O voto afirma categoricamente que "a controvérsia examinada nesse recurso extraordinário tem origem na venda de um ativo da referida empresa (a Varig), submetida a processo de recuperação judicial, em hasta pública, nos termos do parágrafo único do artigo 60 da lei 11.101, de 2005".

Em verdade, na recuperação judicial da Varig, não houve apenas "a venda de um ativo da referida empresa", nem, tampouco, somente a alienação de uma "filial" ou de uma "unidade produtiva isolada", de que trata o parágrafo único do artigo 60 da lei 11.101, como demonstra o articulista a seguir com fundamento em fatos e provas documentais de domínio público, como soem ser o edital de alienação judicial e o auto de leilão da Varig.

Segundo ele, uma leitura atenta do edital de alienação judicial, publicado na imprensa oficial e em jornais de grande circulação, e do auto de leilão da Varig, entranhado nos autos do processo, leva à certeza de que foram vendidos à VRG (1) Todas "as marcas de titularidade das empresas recuperandas que contenham a expressão 'Varig' em suas formas figurativa, nominativa e mista, em todas as suas formas e classes, bem como demais marcas de propriedade da Varig, com exceção das marcas Rio Sul e Nordeste e suas variações"; (2) Todas "as rotas domésticas e internacionais, slots e hotrans nos aeroportos domésticos e internacionais e áreas aeroportuárias nacionais e internacionais atribuídos às concessionárias Varig e Rio Sul, vigentes em março de 2006, mas excluindo Certificados de Homologação de Transporte Aéreo (Cheta), slots (espaços de voos) e os hotrans (horários de voos) pertencentes à Nordeste"; (3) Todas as "operações de transporte aéreo regular nacional e internacional da Varig e Rio Sul, incluindo os Cheta da Varig e da Rio Sul"; (4) Todos "os contratos das recuperandas" necessários ao desenvolvimento das atividades administrativas, comerciais, operacionais ou técnicas; (5) Todo "o complexo de bens e direitos relacionados à operação de voo, excluídos os bens imóveis de propriedade das empresas recuperandas e o ativo circulante pertencente às mesmas, à exceção dos bens e direitos do ativo circulante relacionados a obrigações de transporte a executar e saldo porventura existente de reservas de manutenção e de garantia relacionadas aos contratos de arrendamento das aeronaves"; (6) Todos "os manuais, logs, bancos de dados, softwares e sistemas de hardware necessários à operação"; (7) Todos "os bens e direitos relacionados ao programa Smiles, além de todas as obrigações constituídas de boa-fé atinentes a tal programa" (idem); e (8) Todos os bens móveis, "exceto obras de arte e móveis e utensílios da sede não relacionados à operação".

Em conseqüência, a Varig, que foi a maior e melhor companhia aérea do Brasil e da América do Sul, com uma frota de 70 aeronaves - 58 em operação no início do processo de recuperação judicial - e vôos regulares para 21 cidades do exterior e 32 do país, após o leilão judicial, (1) ficou reduzida a apenas um avião, parado no solo por falta de peças de reposição, e a uma única rota de inexpressiva importância econômica (São Paulo-Porto Seguro); (2) não lhe restou sequer a consagrada marca Varig, eis que também foi vendida, nem, outrossim, logrou manter o Cheta, documento essencial para a exploração de transporte aéreo de passageiros e de carga, nem, ademais, permaneceu com os slots e os hotrans. Por isso, ao ler e reler o voto condutor do Recurso Extraordinário 583.955-9 do Rio de Janeiro, em especial seu penúltimo parágrafo, recorda a lição de Carnelutti, em seu célebre ensaio "La certezza del diritto", publicado na "Rivista di Diritto Processuale Civile" em 1943, segundo a qual a certeza, no direito, tem um custo terrível, e que só se a consegue sacrificando a justiça - daí porque o eminente jus-filósofo defendeu a tese de que há uma antítese entre certeza e justiça. Sem adentrar no mérito da polêmica afirmação de Carnelutti - eis que, no plano abstrato, em um mundo ideal, a certeza e a verdade devem necessariamente desaguar na realização da justiça - no campo dos litígios singulares entre sujeitos singulares no mundo concreto, cujas decisões, sentenças e acórdãos cabem a homens falíveis, por vezes, de fato, há uma nítida e inconteste antítese entre certeza, verdade e justiça.

Por ser absolutamente certo e inquestionável que não houve a venda pura e simples de uma filial ou de uma unidade produtiva isolada da Varig para a VRG, o egrégio STJ, quando for chamado a examinar os fatos ocorridos antes, durante e após o leilão judicial e a decidir a matéria, fará coincidir os ideais de certeza e justiça e declarará que a compra da Varig pela VRG não foi realizada sob o amparo do parágrafo único do artigo 60 da Lei 11.101, razão pela qual a VRG, como sucessora universal da Varig, responde por todas as obrigações e dívidas, de qualquer natureza e espécie, da sucedida, daí aplicar-se ao caso concreto: (1) quanto às obrigações e dívidas em geral, o artigo 1.146 do Código Civil (clique aqui); (2) quanto às obrigações e dívidas tributárias, o artigo 133 do CTN (clique aqui); (3) quanto às obrigações e dívidas trabalhistas, os artigos 10 e 448 da CLT (clique aqui).

Assim sendo, resta assegurado que serão honradas as obrigações e dívidas trabalhistas, o que reconheço incidental-mente apenas como fundamento para decidir a questão de nulidade.

Portanto, queda-se o fundamento utilizado pelo Ministério Público em Primeira Instância para pretender a nulidade.

Ademais, se assim não fosse, conforme o parecer da Procuradoria Geral de Justiça, há desnecessidade de atuação do Parquet. Outro não é o entendimento da doutrina:

"Também em relação aos processos de recuperação de empresa (judicial e extrajudicial) prevê a nova Lei de Falências uma atuação minimalista do Ministério Público. Estando em jogo interesses privados, não há razões para exigir-se do órgão uma constante intervenção. Na recuperação judicial, o Ministério Público só deve ser chamado a intervir no processo de recuperação de empresa quando expressamente previsto." Fábio Uolhoa Coelho, Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação Judicial, Saraiva, 2ª ed., 2005, comentando o art. 4º, pág. 32.

Diante de tais fundamentos o recurso de nossa relatoria foi decidido com a seguinte ementa:

Recurso de apelação do Ministério Público do Estado do Paraná

PRETENSÃO DE NULIDADE DO PROCESSO A PARTIR DA DESIGNAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRELIMINAR. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. VENDA DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. INTERESSES PRIVADOS.

"Também em relação aos processos de recuperação de empresa (judicial e extrajudicial) prevê a nova Lei de Falências uma atuação minimalista do Ministério Público. Estando em jogo interesses privados, não há razões para exigir-se do órgão uma constante intervenção. Na recuperação judicial, o Ministério Público só deve ser chamado a intervir no processo de recuperação de empresa quando expressamente previsto." FÁBIO ULHOA COELHO, Comentários à Nova Lei de Falências e Recuperação Judicial, Saraiva, 2ª ed., 2005, comentando o art. 4º, pág. 32.

Recurso de apelação conhecido e não provido.

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1 Jorge Lobo, advogado, mestre em direito da empresa pela Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) e doutor e livre docente em direito comercial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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*Juiz de Direito em Segundo Grau do TJ/PR

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