Os bens dos sócios no processo de falência
O referido julgado, com todas as vênias, a pretexto de realizar a justiça do caso concreto, criou uma situação de enorme insegurança jurídica, em desrespeito ao disposto no art. 5º, caput e XXXVI, da Constituição de 1988.
O princípio da segurança jurídica é, como sabido, da própria essência do Estado Democrático de Direito e pode ser encarado por duas perspectivas distintas, mas complementares. Sob o prisma objetivo, o princípio da segurança jurídica remete à necessidade de estabilidade da própria ordem jurídica. Já sob a ótica subjetiva, a segurança jurídica desdobra-se na ideia de proteção da confiança e na impossibilidade de se desconstituir, em desfavor do titular de uma determinada posição jurídica, situações há muito consolidadas pela passagem do tempo.
A prescrição e a decadência nada mais são do que emanações lógicas do princípio da segurança jurídica. Estabilizam situações jurídicas há muito consolidadas e impedem, em função do decurso do tempo, a revisão ou modificação de atos ou posições jurídicas de que desfrutam certos indivíduos.
A prolongada passagem em aberto do tempo, como bem enfatizado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), não pode operar como fator de instabilidade nas relações intersubjetivas. Assim é que, como regra, os atos e fatos realizados no mundo do direito se consolidam com o decurso de certo lapso temporal, ainda que ilegais. Isso se dá, inclusive, nas relações que envolvem o Estado, as quais se sujeitam a prazo decadencial ou prescricional, geralmente de cinco anos. Com muito mais razão, a prescrição e a decadência incidem com toda a força nas relações privadas de índole exclusivamente patrimonial.
O julgado do STJ criou uma situação de enorme insegurança jurídica
Existem, é verdade, algumas exceções a essa regra. Um exemplo é o registro da paternidade na certidão de nascimento. É sempre possível a retificação da certidão de nascimento, por via judicial, sem que se possa falar na extinção do direito pelo transcurso do tempo. A segurança jurídica não pode servir de argumento para impedir um filho de saber quem é o seu verdadeiro pai e de ter a certidão de nascimento devidamente corrigida, por maior que tenha sido o decurso do tempo. Mas isso - restringir o princípio da segurança jurídica - só há de ser admitido quando há algum outro princípio constitucional de igual relevância em jogo, como é o caso do princípio do melhor interesse da criança, nas relações de paternidade.
A 4ª Turma do STJ, ao orientar-se no sentido de que é possível a desconsideração da personalidade jurídica a qualquer tempo, indefinidamente, não se sujeitando tal ato a qualquer prazo, quer decadencial, quer prescricional, restringiu excessivamente o alcance do princípio da segurança jurídica, criando uma situação de enorme instabilidade jurídica, sem uma justificativa plausível e razoável para isso.
Não há, na desconsideração da personalidade jurídica, qualquer princípio constitucional contraposto. Muito ao contrário, a aplicação da teoria da "disregard of legal entity" diz respeito, sempre e em qualquer hipótese, a interesses privados de natureza exclusivamente patrimonial, sem envergadura constitucional. Cuida-se de mecanismo criado para permitir que se alcance o patrimônio dos sócios, em caso de fraude à lei ou abuso de direito, para satisfação de direitos patrimoniais existentes contra a sociedade.
Nada justifica, portanto, que a desconsideração da personalidade jurídica possa ser promovida a qualquer tempo, indefinidamente, sem se sujeitar a qualquer prazo extintivo de direito. O prazo prescricional ou decadencial há de ser aquele previsto em lei para que se possa exigir algo da própria sociedade ou para que se possa desconstituir, em virtude da prática de ato fraudulento, alguma relação jurídica de que tenha ela participado.
A superação da personalidade jurídica, para alcançar o patrimônio dos sócios, só pode ser admitida se e enquanto for possível exigir da própria sociedade o cumprimento da obrigação principal ou se e enquanto for possível a anulação do ato por ela praticado. Se não mais for possível a cobrança dos valores devidos, em virtude do decurso do prazo prescricional, ou se houver expirado o prazo decadencial para se postular a ineficácia de ato fraudulento, então prescrito/caduco estará o direito de se pleitear a desconsideração da personalidade jurídica da empresa e de, via de consequência, se redirecionar a execução, individual ou coletiva, em face dos sócios.
Juliana Bumachar e Gustavo Schmidt são, respectivamente, especialista em recuperações de empresas e falências e sócia do Bumachar Advogados Associados; professor de direito constitucional da FGV Rio
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Fonte: http://www.valor.com.br/brasil/991972/os-bens-dos-socios-no-processo-de-falencia
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