segunda-feira, 1 de março de 2010

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação (Jorge Lobo)

Cessão fiduciária de recebíveis na recuperação
Fonte: Valor Econômico
Data do documento: 24/02/2010


A Lei nº 11.101, de 2005, que disciplina a recuperação judicial e a falência da empresa, tem gerado controvérsias a respeito da cessão fiduciária de títulos de crédito e de direitos creditórios (conhecidos como "recebíveis") em garantia de empréstimos e financiamentos bancários, havendo se formado duas correntes de opinião: a maioria sustenta que a cessão de recebíveis não está sujeita aos processos concursais; a minoria afirma que excluí-los da recuperação e da falência do devedor-fiduciante importa em conceder odioso privilégio aos bancos em detrimento dos interesses dos demais credores.

É truísmo que o direito anda a reboque dos fatos, sobretudo em épocas de autênticas revoluções científicas, técnicas e tecnológicas, que fazem desaparecer antigas necessidades e anseios e surgir novas demandas e reclamos por bens e serviços, que exigem o aparecimento de mecanismos e expedientes legais aptos a atendê-los, como soe acontecer com a cessão fiduciária em garantia de recebíveis.

É truísmo, outrosssim, que o acúmulo de ações e execuções judiciais de longuíssima duração e o fracasso na excussão dos direitos reais de garantia clássicos para satisfazer os direitos do credor pignoratício e do credor hipotecário, duas das mais notórias manifestações da crise da Justiça, impuseram a recriação da fidúcia ou negócio fiduciário, sob diferentes formas, a saber: (a) a alienação fiduciária em garantia de coisa móvel; (b) a alienação fiduciária em garantia de coisa fungível; (c) a propriedade fiduciária de coisa móvel infungível; (d) a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel; (e) a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais; (f) a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis; (g) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito e (h) a cessão fiduciária de recebíveis em garantia de empréstimos e financiamentos bancários.

Com efeito, logo após a promulgação da Lei nº4.728, de 1965, que incorporou, ao direito positivo brasileiro, o instituto da alienação fiduciária em garantia de coisa móvel, a Lei nº 4.864, também de 1965, com a finalidade de estimular a construção civil, criou, no artigo 22, a cessão fiduciária de direitos decorrentes de alienação de unidades habitacionais, com o aplauso da doutrina pátria, vindo a Lei nº 9514, de 1997, no artigo 17, II, a instituir a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis e, por fim, a Lei nº 10.931, de 2004, a dispor sobre a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito - além de direitos creditórios, presentes e futuros, em se tratando de garantia constituída através de Cédula de Crédito Bancário, nos termos do artigo 31 da referida Lei nº 10.931-, todos institutos de direito econômico, que se distinguem pela clara finalidade de buscarem soluções técnicas, que atendam às exigências do mundo moderno, e de serem respostas prontas e eficazes às novas, crescentes e instáveis exigências de uma sociedade em vertiginosa transformação, sem suprimir ou esmagar os direitos individuais do cidadão.

Isto posto, adentrando na controvérsia, entendo que cessão fiduciária em garantia de recebíveis é a transferência, limitada e resolúvel, que faz o devedor-fiduciante ao credor-fiduciário, do domínio e posse direta, mediante tradição efetiva, de direitos creditórios oriundos de títulos de crédito próprios e impróprios ou de contratos em garantia do pagamento de obrigação a que acede, resolvendo-se o direito do credor-fiduciário com a liquidação da dívida garantida e a reversão imediata e automática da propriedade ao devedor-fiduciante uma vez satisfeito o débito.

Ocorrendo mora ou inadimplemento da obrigação garantida, o credor-fiduciário poderá, independente de anuência do devedor-fiduciante, exercer os direitos inerentes e decorrentes dos créditos cedidos, aplicando as importâncias recebidas no pagamento do principal da dívida, acrescido de juros compensatórios e moratórios, pena convencional, honorários de advogado e despesas de cobrança, devendo entregar ao devedor-fiduciante o saldo que houver. Eis que, como assinala Melhim Namen Chalhub, "a cessão fiduciária e a alienação fiduciária são institutos similares, exercendo a mesma função de garantia do crédito e alicerçando-se nos mesmos fundamentos; enquanto na alienação, o objeto do contrato é um bem (móvel ou imóvel), na cessão o objeto é um direito creditório; em ambas, a transmissão do domínio fiduciário ou da titularidade fiduciária subsiste enquanto perdurar a dívida garantida". Razão pela qual o tratamento legal da cessão fiduciária em garantia de recebíveis se orienta pelos mesmos princípios da alienação fiduciária em garantia de bens móveis e imóveis, aplicando-se-lhe, ademais, por interpretação extensiva e analógica, as Leis de números 4.728, de 1965, com a redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004; 4.864, de 1965, e 9.514, de 1997, além do Decreto-Lei nº 911, de 1969.

Destarte, a Lei nº 11.101, de 2005, ao referir-se, no artigo 49, parágrafo 3º, a "proprietário fiduciário de bens móveis", e, no artigo 85, a "proprietário de bem arrecadado", abrange tanto o proprietário fiduciário, que adquiriu essa qualidade por força de contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis, quanto o proprietário fiduciário, que ostenta essa posição em decorrência de contrato de cessão fiduciária em garantia de recebíveis, ambos espécies de negócio fiduciário ou "venda para garantir" e institutos de direito econômico, que têm a finalidade precípua de servir de instrumentos, a serviço do Estado e dos particulares, do desenvolvimento econômico e social do país, daí serem regulados por princípios jurídicos próprios, que não seguem a ideia de justiça, mas de eficácia técnica, o que explica, justifica e fundamenta a sua exclusão dos processos de recuperação judicial e de falência do devedor-fiduciante.

(Jorge Lobo é advogado, mestre em direito da empresa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor e livre docente em direito comercial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ))

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